quinta-feira, 11 de julho de 2013

PRIMAVERA NO GERÊS - 6

    Domingo era o dia que tinha destinado para ir até Vilarinho das Furnas. Saí cedo, levei a autocaravana até à barragem, onde a deixei encostada ao paredão. Mochila às costas, máquina fotográfica a tiracolo e cajado na mão, lá parti. O caminho de acesso à antiga aldeia começa na barragem, onde existe uma cancela fechada, cuja chave possuem alguns antigos habitantes que têm colmeias e outras pequenas explorações junto da aldeia. O caminho é sempre junto à margem da albufeira, numa paisagem muito bonita e silenciosa.

Barragem de Vilarinho das Furnas
    Passado talvez um quilómetro começa a ouvir-se o sussurrar longínquo de água a correr, ruído que se vai avolumando à medida que progrido no terreno. Já sabia da existência de uma bela queda de água, pois sou um velho visitante destas paragens, mas para se ouvir àquela distância tinha que estar bem nutrida! De facto, quando fiz a última curva antes de lá chegar, deparou-se-me uma visão espectacular, com a cascata enorme, com uma força que é raro presenciar. Como estamos no princípio do Verão e o Inverno foi muito chuvoso, aí está o belo resultado!

Pouco depois comecei a ouvir vozes. Ia um grupo um pouco à minha frente, com a aparência de reformados em dia de passeio. Passei para a frente e continuei. A paisagem e o ambiente envolvente são arrebatadores. Só se ouvem as aves, os regatos muito frequentes e um ou outro peixe que salta na água.


Habitualmente, há um carreiro que passa junto à água e vai até à aldeia, mas agora como a barragem estava quase na cota máxima, o carreiro estava interrompido pela água. Tive que subir por umas grandes rochas, com algum perigo, pois tem que se trepar com a ajuda de pés e mãos o que se complica se houver bagagem. Por fim lá passei para o outro lado. Há ainda pequenos soutos, carvalhais e bosques de outras espécies, restos da existência de explorações agrícolas. Começo a ver muros de pedra solta, que delimitavam propriedades.

Praia em Vilarinho das Furnas...




Mais umas escaladas por outros rochedos e finalmente estou no local onde ficava a parte alta da aldeia.







Perscrutando as águas adivinhando a aldeia submersa...
Comecei a interessar-me por esta aldeia ao ler a obra de Jorge Dias, grande etnólogo, que obteve o primeiro doutoramento em etnologia em Portugal, aos 60 anos, com o trabalho sobre Vilarinho da Furna, nome correcto da aldeia e para o qual viveu algum tempo no meio dos camponeses, participando nos seus trabalhos, nas suas festas, no seu ambiente comunitário de que esta aldeia foi o expoente máximo em Portugal. Junto com Rio de Onor, perto de Bragança, foram as duas aldeias mais representativas da vida comunitária, apenas permitida pelo completo isolamento e necessidade de sobrevivência só garantida pela partilha de trabalhos, tarefas, justiça e posse da maioria dos bens da aldeia. Por isso me sinto bem ali, furando as silvas e o mato que agora cobre o que outrora eram lameiros e quintais que alimentavam famílias, saltando por cima das pedras e das ruínas onde existiram casas que abrigavam pessoas que ali viveram, amaram, morreram e onde pastavam vacas, cabras e ovelhas, debicavam galinhas e patos, onde chafurdavam porcos procurando bolotas caídas de carvalhos. Tudo desapareceu em 1973, submerso nas águas de uma barragem que é apenas reservatório de água para engrossar o fluxo da Caniçada, lá bem mais abaixo.
Antigo lameiro





Sentei-me no meio de um ribeiro de águas límpidas que saltitam no meio das pedras redondas e pus-me a devorar o meu lanche.






Momento do repasto




Ouvi então o ruído de um animal, fui espreitar e vi um cavalo a olhar para mim, surpreendido. Estava em muito mau estado, aparentando estar doente e deve ter sido deixado ali por algum dos antigos habitantes. Pasto e água não lhe faltavam...




Habitante inesperado em Vilarinho da Furna





Ainda descobri um antigo moinho comunitário, depois de atravessar moitas de silvas e mato cerrado.






Antigo moinho de água


A aldeia propriamente dita, está toda submersa. Só em anos muito secos, no final do Verão, aparecem algumas das antigas casas, em ruínas e consegue-se andar no meio dos antigos caminhos estreitos, enlameados, vendo-se ainda a ponte sobre o ribeiro. Liberta-se então uma enorme nostalgia que tudo envolve e enche de melancolia e tristeza os espíritos dos amantes da ancestralidade da terra portuguesa, da simplicidade das coisas, de todo um modo de viver, duro mas feliz, que, simbolicamente, aqui jaz sepultado sob as águas. Imagine-se o que sentem então os que ainda aqui nasceram e viveram...

Local onde está submersa a aldeia

Com este sentimento que sempre me invade quando aqui venho, iniciei o caminho de regresso. Novas acrobacias sobre as rochas. Desta vez cruzei-me com mais grupos, lembrando-me que era domingo. O tempo entretanto aquecera. Cheguei à cascata, para mais umas fotos e deliciar-me com aquela visão.


Pouco depois cheguei à barragem. Ainda uma surpresa. O local estava completamente cheio de motos e gente devidamente "fardada" a preceito. Eram centenas, por todo o lado, muitos dos quais tinham até descido à base do paredão ao local onde sai um jacto de água.



Como eram horas de almoço, já suspeitava onde iria toda aquela gente almoçar, num local com relativamente poucas opções. A autocaravana nem se via, rodeada de motos por todo o lado. Tinha mesmo que esperar que toda aquela confusão dispersasse, o que ainda demorou uma meia hora. Por fim, arranquei também e quando cheguei à Cerdeira, é claro que estava transformada num parque motard... Mas só o restaurante estava ocupado e acabei por ter o almejado sossego garantido pela grande extensão do parque de campismo. E por ali fiquei durante a tarde, gozando a óptima temperatura, o sol filtrado pelo arvoredo, vendo a tarde declinar naquele "dolce fare nienti"...

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