O penúltimo dia de estadia estava destinado a uma experiência que perseguia há anos e que, por um motivo ou por outro, foi sempre adiada até agora: fazer a Ruta del Cares, caminhada mítica, de renome mundial. Trata-se de um trilho conquistado à montanha ao longo de desfiladeiros, escavado na parede rochosa de penhascos com centenas de metros de altura, por gargantas abertas ao longo de milhões de anos pelo rio Cares, que nos acompanha sempre ao longo do percurso, numa correria vertiginosa bem lá no fundo, na maior parte do trajecto, nuns arrepiantes centos de metros mais abaixo. A "Ruta" propriamente dita, vai de Poncebos a Caín, numa extensão de cerca de 12 Km. Quem parte de Poncebos, tem os primeiros 2 Km sempre a subir, em muitos pontos com um declive acentuado, com piso pedregoso e solto, por um caminho bem estreito e perigoso. Sabíamos que iríamos encontrar muita gente, pois o trilho é famoso, sempre muito concorrido e era Semana Santa. Ainda por cima, tínhamos que fazer o nosso diário percurso, por Potes, desfiladeiro de la Hermida, Panes, virar em Arenas de Cabrales e finalmente, Poncebos. Sair não sair, fazer este percurso demorado e com a diferença horária, chegámos a Poncebos pelas 10 horas. Já não se podia passar do parque de estacionamento que fica a 2 Km do início do trilho. Primeiro revés, pois este percalço acrescentava imediatamente 4 Km à nossa caminhada! Estacionámos o carro, aprontámos a mochila com o que era importante, água, sumos, umas sanduíches, barras energéticas, chapéus e os cajados que nos acompanham há anos nestas andanças. Partimos, no meio de mais umas dezenas de pessoas, gente de todas as idades, jovens, pessoas de meia idade, crianças de tenra idade, cães... Uns, equipados como se fossem trepar ao Evereste, outros vestidos como se se fossem sentar calmamente na esplanada. Havia de tudo, como aliás já estamos habituados a encontrar. Ainda há um ano encontrei no Cirque de Gavarnie, em plena montanha e num trilho complicado de atacar, uma "madame" calçada com sapatos de salto alto, bons para ir a um requintado jantar de gala! Já sei que ao fim dos primeiros quilómetros, até o peso das moedas que levamos na carteira fazem a diferença! Passámos a antiga central eléctrica de Poncebos, a ponte sobre o Cares, junto à entrada do funicular de Bulnes, os bares e restaurantes de Poncebos e iniciámos a subida. Havia carros estacionados até mesmo ao limite do possível, certamente pessoas que haviam chegado cedíssimo! Neste ponto o Naranjo de Bulnes deu-nos as boas vindas, espreitando por entre a neblina que agora começava a dissipar-se, provocando efeitos fantasmagóricos, mas de grande beleza.
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Subida inicial, Ruta del Cares |
O céu agora era de um profundo azul e a temperatura agradável. Imagino o que será subir isto em Julho ou Agosto! O caminho sobe sempre, íngreme, as pedras a soltar-se e a rolar debaixo dos nossos pés e o abismo à esquerda, mesmo ali ao lado. Via-se imensa gente, alguns com crianças pela mão e outros ainda deixando as crianças à vontade, a correr junto ao precipício!!
A subida revelava-se extenuante. A certa altura apareceram umas casas em ruínas, com algumas cabras selvagens por perto, a exigirem as merendas aos caminhantes. Prossegui sòzinho a partir daqui.
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Primeiros 2 Km, sempre a subir. |
Sabia que não faria o percurso por inteiro neste dia. Ir de Poncebos a Caín, são 24 Km aproximadamente. Para um caminheiro bem preparado fisicamente não é nada de extraordinário, mas trata-se de um percurso inteiramente em montanha, com troços de média dificuldade, perigoso, e com paragens frequentes, quer para descanso, quer para observação e captação de fotos. Há quem recorra a transportes públicos e há quem prepare antecipadamente alojamento no destino e regresse no dia seguinte.
As vistas são soberbas, a sensação de majestosidade é indescritível. Sentimo-nos muito pequenos em face da magnitude daquelas montanhas, da impetuosidade do rio muito no fundo, da altura imensa dos rochedos sobre os quais vamos avançando.
O caminho é agora relativamente plano. O trilho tem cerca de 1,5 m de largura, sem qualquer protecção e há pessoas que seguem descontraidamente mesmo à beira do precipício, como se passeassem no jardim do bairro.
Atravessamos pequenos túneis
que desembocam no trilho cortado directamente na parede rochosa, por mãos corajosas que arriscando a vida abriram uma passagem que evita uma volta de dezenas de quilómetros. A paisagem é impressionante. Convém não olhar para baixo!
Nova sucessão de túneis
E um momento de pausa para recuperar forças.
Sensivelmente a meio, resolvi voltar para trás. A tarde avançava e havia todo o caminho já feito, para percorrer em sentido inverso. A metade que faltava, penso que é a mais impressionante ainda, em termos paisagísticos, com pontes suspensas sobre o abismo e o rio Cares, mas ficará para breve.
Regressei pois ao ponto de reencontro, até ao condomínio das cabras que iam cobrando a sua portagem em alimentos, a quem ia passando.
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Início da descida de regresso |
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E começámos a descer. Com tanta pedra redonda solta é preciso cuidado para não resvalar e acabar no fundo da ravina.
Depois de mais um teste aos tendões rotulianos, chegámos ao ponto de início da Ruta, onde também começa o GR-202 que trepa até Bulnes, depois de 5 Km de subida íngreme.
Fica também na lista para breve... Esta vereda que sobe pela montanha, era até há uns anos atrás, o único acesso à pequena aldeia de Bulnes, a única em toda a Espanha que não tem acesso por estrada.
Agora existe o funicular, que furando a montanha por cerca de 2 Km, leva as pessoas e bens até quase à entrada do povoado. O bilhete para não residentes é caro, um pouco mais que 21 €.
Faltavam ainda mais 2 Km até ao parque de estacionamento. As pernas agora iam bem mais cansadas do que de manhã. No entanto a beleza do percurso, sempre com o rio Cares ao nosso lado, amenizava o esforço. Queria ir ainda a uma aldeia que me ficou sempre na memória pelo seu isolamento e pela estradinha que trepa até lá acima. Sotres. Imagino o que seja viver aqui no Inverno, isolado pelos nevões e sem acesso ao exterior durante dias ou semanas. A estrada é estreitíssima, perigosa, com ravinas em todo o seu percurso, mas agora, ao contrário do que sucedia há uns anos, tem rail's de protecção.
Ao fim de muitos quilómetros de penosa subida, chegámos a Sotres. Havia muita gente que tinha pensado o mesmo que nós e que vagueava pela aldeia, fotografando freneticamente casas, esplanadas, bois, relva ou bosta...
Satisfeito o capricho, descemos pela estradinha em que cada cruzamento com outros carros tem que ser feito com muito cálculo. Depois de uma sucessão de pequenos túneis, estávamos de novo em Poncebos. E a partir daqui, o regresso a Brez, sem história, pelo percurso habitual. Estava concluída a nossa expedição aos Picos da Europa, cujo regresso iríamos empreender no dia seguinte.