quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

LINHA DO LESTE

Estação de Abrantes
Os comboios sempre exerceram sobre mim um estranho fascínio. Não sei de onde provém esta reminiscência; não tenho antepassados ligados à ferrovia e a linha de caminho de ferro mais próxima do local onde vivo fica a 20 Km. No entanto, as estações, as linhas, as locomotivas, o cheiro acre da creolina que conserva as travessas de madeira, tudo isso me atrai e me lança uma chamada permanente. Os sucessivos governos dos últimos trinta anos, parece terem feito um pacto com alguém, para acabar com o transporte ferroviário em Portugal. E assim, qual árvore a quem são amputados um após outro, os seus ramos, a rede ferroviária portuguesa que cobria o território nacional de uma forma abrangente, viu serem-lhe encerradas sucessivamente linhas e ramais. O actual governo, que se prepara para aplicar portagens na entrada das cidades (para defender o ambiente, claro...), vai encerrar mais 622 Km de linhas ferroviárias. Tudo medidas coerentes, portanto! É verdade que nestes quilómetros a encerrar já se contabilizam as que estavam "desactivadas", pois no léxico utilizado na cruzada contra a ferrovia, tudo conta: encerrados, desactivados, cortados, fechados, abandonados, em manutenção, em estudo, em apreciação... E antes que fechem todas, exceptuando as linhas urbanas de Lisboa e Porto, decidi percorrê-las uma a uma, começando pelas que correm maior risco de encerrar. Assim e num acto premonitório, fui passear na linha do Leste, entre Abrantes e Elvas, mesmo antes do anúncio do seu fecho a passageiros.


Iniciei o percurso na estação de Abrantes que, de importante entroncamento ferroviário para onde convergiam a linha do Leste que ia até Badajoz e que agora vai encerrar a passageiros e o Ramal de Cáceres, já encerrado recentemente e que ligava Portugal, a partir de Torre das Vargens até Madrid, se vê agora como banal estação da Linha da Beira Baixa, até algum dos cérebros iluminados que compõem invariavelmente os governos em Portugal, decidir encerrá-lo também. O percurso entre Abrantes e a primeira estação seguinte, Bemposta, é feito paralelamente à estrada nacional Nº 2, seguindo-se Ponte de Sor. É uma zona marcada pelo desemprego provocado pelo encerramento de indústrias, principalmente ligadas à produção de componentes para automóveis, o que implica em seguida o abandono por parte da população activa e o consequente contributo para a desertificação de todo o interior do país. Vem a seguir Torre das Vargens, estação onde começa também o Ramal de Cáceres, que, passando por Castelo de Vide, Beirã-Marvão, seguia por Cáceres até Madrid e que encerrou recentemente, como disse. A partir daqui a paisagem modifica-se, começando a rarear as povoações, vendo-se apenas de quando em quando a tradicional forma de ocupação alentejana do território, com "montes" e casais isolados. Há gado grosso e miúdo a pastar nos campos e junto à linha, que se assusta à passagem do comboio, que de tão raro, não lhes causa habituação...Pouco depois, começa a ver-se no horizonte uma pequena elevação coroada por um povoado. Adivinho o Crato, o que se confirma quando pouco depois o comboio se detém junto a uma estação semi-abandonada, à semelhança de todas as outras, umas completamente degradadas e vandalizadas, outras inesperadamente recuperadas, com portas e janelas emparedadas, com apenas uma pequena sala de espera disponível para utilização pelos raríssimos passageiros. Até as casas de banho, com o característico "retrete" afixado, desapareceram, ou têm as portas substituídas por paredes intransponíveis! Segue-se novo troço, comprido e monótono, o "tac-tac" característico dos rodados a passar sobre as uniões dos carris, o contínuo balouçar da automotora provocado pela falta de manutenção adequada da linha, obrigando a marcha extremamente lenta. Começa a ver-se ao longe, para norte, uma grande povoação, nas faldas de uma serra verde. Só pode ser Portalegre, pela dimensão e posição, o que comprovo quando pouco depois o comboio abranda e dá entrada na estação desta cidade, apesar de distar dela cerca de 13 Km. Aqui começava outro ramal para sul, que ia até Estremoz, passando por Cabeço de Vide, Fronteira e Sousel, já encerrado há muito. Continuamos por paisagens iguais, nesta época com muita água, verdes, aqui e ali atravessadas por passagens de nível vindas aparentemente do nada, até Assumar. O comboio pára, sem motivo, apenas por parar, porque assim está estabelecido, já que nas estações não se encontra ninguém e dentro, apenas nós, que vamos para Elvas e um outro senhor que vai para Badajoz. Segue-se Arronches, só de nome, porque a vila fica a 5 Km. O comboio prossegue a não mais de 20 Km/h, balouçando imenso e assim vai até Stª Eulália, povoação à beira da Barragem do Caia. Já estamos perto do término da nossa viagem. Pouco depois vemos ao longe um monte, que ao aproximar-se nos permite ver no cimo um forte, o ex-libris dos fortes portugueses, o forte da Graça, bem conhecido e temido por todos os que serviram nas forças armadas. Entramos logo a seguir na estação de Elvas. Esta ainda se encontra aberta, com funcionários e é actualmente um entreposto de mercadorias (eu diria "mercancias") com alguma importância, razão pela qual a linha será encerrada para passageiros mantendo-se o serviço de mercadorias, a que ao que julgo saber, não será alheia a
pressão exercida pelos espanhóis. Como a cidade fica bastante longe, tivémos que chamar um táxi a partir do café mais próximo, que nos transportou ao seu centro. O dia estava com o céu limpo, mas bastante frio. Percorremos o centro histórico de Elvas, algo animado, muitos espanhóis claro, que ao sábado e domingo ali procuram a boa comida portuguesa e mais barata. Nós fizemos o mesmo,saboreando um delicioso coelho à caçador.
Aproveitámos o resto da tarde para visitar a biblioteca municipal, grande e bem recheada. Subimos às muralhas, de onde se avista o belo aqueduto da Amoreira, bem como os fortes da Graça e Stª Luzia. É no entanto confrangedor olhar através do binóculo ali disponível e constatar o estado de abandono e degradação a que chegou um dos principais símbolos da nossa soberania na região. Elvas foi a principal praça forte portuguesa, constituindo o seu conjunto de muralhas, fortes, fossos e revelins, uma defesa formidável contra o nosso único vizinho.

E não foi assim há tanto tempo que serviram para nos defender na guerra peninsular, no rescaldo das invasões francesas. Entre 1809 e 1814, deram-se ali grandes recontros entre tropas aliadas de ambos os lados, de que resultaram muitas baixas. Alguns oficiais ingleses mortos em combate, encontram-se sepultados num jardim situado junto de uma das muralhas. Se pudessem saber que a cidade por cuja independência deram a sua vida, envia hoje as suas mulheres para darem à luz nas maternidades do outro lado da fronteira, dariam saltos de revolta nos seus túmulos. Sinais dos tempos, ou talvez não, o quartel da cidade foi também desactivado, contribuindo de forma decisiva para a morte da linha de caminho de ferro. Eram os militares que davam vida ao comboio e também à cidade, é bom dizê-lo. Hoje, apenas alguns estudantes do pólo do IPP ali existente, utilizam o comboio ao fim de semana. Mas os horários não servem a ninguém. A táctica do fecho de linhas é sempre igual: primeiro vão-se suprimindo comboios ao longo do dia. As pessoas afastam-se e arranjam as alternativas possíveis. Deixa de se fazer manutenção da via. Depois, quando já não há ninguém para transportar, encerra-se, com o pretexto da falta de passageiros e da falta de segurança!
Regressámos a Abrantes no único comboio possível, que parte de Elvas às 17,30h, fazendo o trajecto já de noite. Éramos os únicos passageiros a bordo... 
Espreitando o Forte da Graça

domingo, 18 de dezembro de 2011

LINHA DO VOUGA



Com que sentimentos terá partido dali, de Oliveira de Azeméis,  Ferreira de Castro, ainda criança, rumo ao desconhecido, para o longínquo Brasil, onde o esperava uma vida de terríveis sacrifícios, cheia de perigos, como sabemos ao ler uma das suas obras-primas "A Selva"? Com que peso no coração se terá acercado daquela pequena estação, escura, certamente gelada numa madrugada de Janeiro de 1911...
Pouco depois do seu centenário, também esta Linha do Vouga tem a sua sentença de morte anunciada para breve. Num acto de premonição, no ano passado, 2010, comecei a viajar em todas as linhas e ramais ferroviários com maior risco de encerrar. Assim, percorri a parte do Ramal de Cáceres, entre Torre das Vargens e Marvão-Beirã, e o trecho da Linha do Sul, entre Beja e a Funcheira. Já na Primavera deste ano de 2011, fui conhecer a Linha do Vouga, primeiro entre Oliveira de Azeméis e Espinho e depois entre Macinhata do Vouga e Aveiro. Parece que estava a adivinhar o que aí vinha... O Ramal de Cáceres já está encerrado e o troço entre Beja e Funcheira e toda a Linha do Vouga, têm o encerramento anunciado para breve! E já neste Outono, despedi-me da Linha do Leste, percorrendo-a desde Abrantes a Elvas, ao que parece, também pela última vez...
Mas voltando à Linha do Vouga, surpreendeu-me a razoável afluência de passageiros, especialmente sendo sábado. Partimos de Oliveira de Azeméis às 9,58 H, passando por S. João da Madeira, Stª Maria da Feira , Paços de Brandão, até Espinho, onde chegámos às 11H. É um percurso sem grande beleza paisagística, quase sempre por zonas urbanas, fortemente industrializadas, mas também com bons exemplos de arqueologia industrial... Chegados a Espinho, esperámos apenas para o comboio fazer a manobra necessária para voltar a percorrer o mesmo percurso em sentido contrário. Em sábado diferente, fomos percorrer o trajecto entre Sernada do Vouga e Aveiro. Apanhámos o comboio em Macinhata às 13,26H, dado que no regresso seria nesta estação o fim da viagem. Aqui existe um interessante museu ferroviário, que já havíamos visitado em ocasião anterior. O comboio segue junto ao rio Vouga durante breve trecho, afastando-se depois rumo a Águeda, cidade que atravessa. Faz de seguida uma inversão para norte, passando por baixo de um grande viaduto, do IC-2, continuando a sua viagem até Aveiro. A estação antiga de Aveiro é muito bonita, com belos painéis de azulejos. Há outra parte bem maior e muito mais moderna, que serve a linha do Norte que tem aqui uma das suas grandes estações. Como o comboio de regresso só partiria duas horas depois, decidimos ir passear pela cidade. Aveiro também mostra as marcas da crise económica. Inúmeras lojas fechadas, prédios em ruína, outros em degradação acentuada... Pouco depois das 16 H, fomos comprar os bilhetes de regresso para as 16,34H. Ficámos surpreendidos quando nos informaram não saber se haveria comboio pois talvez o maquinista fizesse greve às horas extraordinárias. Alguém explicou que ali todas as horas eram extraordinárias pois os maquinistas eram os mesmos da Linha do Norte, que asseguravam também aquela em horário extra! Que teríamos que entrar no comboio e logo se veria. Às 16,34H, com o motor parado e o comboio cheio, vieram avisar que afinal o maquinista não viria. Andava por ali a vaguear, mas não iria trabalhar. Furioso dirigi-me à bilheteira para reaver o dinheiro e barafustar com algumas frases menos agradáveis, entre as quais que se a linha fechasse não haveria mais horas extraordinárias para fazer. Mal sabia eu como estava a profetizar! Tivémos que aguardar pelo comboio seguinte, às 17,53H, na esperança de que este maquinista lhe apetecesse ir até Sernada do Vouga, o que veio a acontecer de facto.
Os comboios são relativamente rápidos para uma via estreita e têm bastante afluência, dado que há várias composições ao longo do dia e serve zonas bastante populosas, por isso é uma das linhas que não se compreende que encerre. Mas estas decisões não são para nós compreendermos. São decisões "técnicas e estratégicas" tomadas por políticos que pouco mais conhecem do país do que Lisboa, baseadas em estudos feitos por consultoras que têm ao seu serviço técnicos que nada sabem do país nem da vida e que não fazem a mínima ideia da importância que tem o comboio no contexto territorial, social, económico e de fixação da pouca população que ainda resiste fora dos grandes centros urbanos. Não dá lucro, fecha-se e pronto! Liquidam-se linhas centenárias, que na sua construção tiveram custos astronómicos, em dinheiro e em vidas humanas, único meio de deslocação das pessoas que vivem nas aldeias por elas servidas, tendo como único critério de aferição o do lucro ou do prejuízo, como se se tratasse de uma empresa privada. Por um lado encerram-se as linhas ferroviárias, por outro preparam-se portagens para veículos automóveis na entrada das cidades, em nome da protecção do ambiente! Viva a coerência...

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Decidi criar este blog, para partilhar experiências de viagens em território português, com eventuais incursões por Espanha e França. Quando falo em território português, refiro-me mais concretamente ao interior do continente, a locais pouco concorridos e de escassa população. Nos últimos anos, temos visto publicar inúmeras obras sobre esta temática: passeios de fim de semana, escapadelas, percursos, guias, com conteúdos mais ou menos semelhantes, descrevendo locais de interesse, sítios para comer, dormir e visitar. Acontece porém que o acto de viajar é um processo intrinsecamente dinâmico. Há locais que já visitei e percorri dezenas de vezes e que nunca encontrei de forma igual a outra. E quantos de nós já parámos num determinado local para tomar uma refeição, influenciados por opinião favorável veiculada por amigos ou por uma dessas publicações, apanhando depois uma desilusão, ou coisa pior? Porque uma boa experiência hoje, não garante outra igual amanhã. E nesta coisa de viajar, se é útil ser portador de algumas boas sugestões, há que contar sempre com a componente aventura, que deve ser nossa companheira inseparável, para que possamos sempre acrescentar algo ao nosso portfólio de viajantes, a cada surtida que realizamos. Espero assim contribuir para dar novas ideias aos entusiastas do lindo país que é o nosso, ou simplesmente possibilitar umas deambulações ecológicas e baratas, em viagens mentais sem sair de casa...